Loomio
Tue 31 Mar 2015 6:26AM

sociedades piratas sem prisões? - discussão sobre abolição do sistema prisional

G galdino Public Seen by 68

"Há um século e meio que a prisão vem sendo dada como seu próprio remédio." (Foucault)

ahoy!

gostaria de iniciar aqui uma discussão sobre a questão do abolicionismo do sistema prisional, algo que eu gostaria de propor para nosso programa com a colaboração de pessoas associadas e não-associadas simpatizantes do partido pirata.

o que diz atualmente nosso programa sobre prisões?

18.3. Subordinação do sistema prisional à Rede Pública de Ensino

Nós piratas entendemos que o papel primário de qualquer sistema prisional deve ser o de oferecer oportunidades de aprendizagem, de forma tal, que uma vez cumprida a pena as pessoas estejam aptas a conviver em sociedade com algo novo a contribuir. A realidade vigente dos presídios brasileiros é de absoluta precariedade, o que faz deles escolas de crime; um ladrão de galinhas entra num presídio e não incomum sai dele um assassino qualificado.

Entendemos que o papel de agentes de segurança em presídios deve ser complementar, de tão somente assegurar o cumprimento das penas nos regimes de reclusão previstos. Operacionalmente, presídios deveriam ser dirigidos por profissionais da educação com formação especial e funcionar como internatos, dentro dos quais o aprendizado em diferentes níveis fosse a principal finalidade. Alfabetização, Ensino básico, Ensino superior presencial e à distância, ensino técnico – todos deviam ser viabilizados dentro dos presídios através das redes de ensino público. O sistema prisional deve também assegurar oportunidades verdadeiramente construtivas de trabalho, desde que justificado sob a perspectiva da educação, nunca sob uma perspectiva de trabalho forçado injustificado ou de provimento de mão de obra precária a empresas que visem lucro com isso.

De forma equivalente, os órgãos responsáveis por pessoas menores de idade deveriam se submeter a um regime de funcionamento totalmente voltado para a educação, mais do que hoje pretendem ser, com aporte financeiro suficiente para garantir educação pública de qualidade dentro dessas instituições, bem como formação técnica, de forma a fornecer perspectivas de vida futura às pessoas lá retidas. Nessa perspectiva de recuperação através da educação, nós piratas entendemos que redução de maioridade penal não é aceitável, posto que jovens necessitam de ambiente próprio para os processos de ensino-aprendizagem em idade formativa.

E uma vez cumpridas as penas, nós piratas entendemos que ninguém além da própria justiça e da polícia devam saber se uma pessoa é ex-detenta. Ao ter seus antecedentes criminais expostos, essas pessoas, sobretudo de menor poder aquisitivo, passam por dificuldades para conseguir trabalho e terminam sendo retroalimentadas na criminalidade.

.................

condizentes com nossas políticas de direitos humanos, condenamos o atual modelo do sistema prisional brasileiro e semelhantes, entendendo que tal modelo deva dar lugar a um ambiente mais "humanizado" onde a educação preenche todos os espaços atualmente ocupados pela violência (física, psicológica ou de qualquer outro tipo). o foco na educação não está descolado de nossa política de direitos: "Piratas entendem que a educação é direito fundamental de toda e qualquer pessoa" (do tópico 11 sobre educação). a universalização da educação e sua determinação como direito fundamental não poderiam nos impedir de pautar a educação dentro do sistema penal a não ser por uma fraqueza ideológica e uma discriminação com as pessoas detentas, e isso não ocorreu (felizmente).

no entanto, podemos pensar: nosso ideal deve ser a transformação radical desse sistema ou a própria abolição do mesmo deveria pautar nossos ideais de como se deve solucionar a questão da criminalidade/segurança pública? da introdução do tópico sobre segurança pública já citado parcialmente aqui: "Nós piratas entendemos que segurança pública é, antes de tudo, uma questão de garantir oportunidades de vida às pessoas, de empoderá-las de tal forma que não necessitem buscar no crime soluções para problemas de suas vidas. Antes de se pensar em políticas de segurança propriamente ditas, devemos pensar em políticas de educação, de acesso à cidade, de saúde e de cultura". ora, nós admitimos sem problemas que não há política de segurança pública que resolva idealmente os problemas de segurança pública sem que sejam resolvidos antes os problemas relacionados à educação, à saúde, à cultura e ao acesso à cidade. reconhecemos a necessidade de "uma mudança radical em nossa educação, em nossos modos de vida, economia e em outros aspectos da sociedade" como condição para própria democracia em sua plenitude (ver segundo parágrafo do programa). reconhecemos a necessidade de várias modificações no código penal: "Entendemos também que parte fundamental de uma política de segurança que funcione envolve não criminalizar hábitos e práticas que causam um mal maior à sociedade quando criminalizadas" (da introdução anteriormente citada).

essas modificações são propostas pelo entendimento claro de que os processos de criminalização que são alvos das mesmas não fazem sentido em uma política de segurança e apenas servem para produzir mais prejuízo na sociedade em vários âmbitos, além de serem extremamente ineficientes no que diz respeito ao objetivo dessas leis (como já lemos até a exaustão no que diz respeito à política de drogas do estado brasileiro e de outras nações).

tomando nosso ideal de democracia plena fundamentado no empoderamento das pessoas, podemos nos perguntar: será que o problema mais fundamental de nossa sociedade não é justamente a existência de leis que podem determinar o que é crime ou não? quais setores da sociedade brasileira são beneficiados pelas leis? para quem serve o código penal? tomando agora o fato de que apontamos para um paradigma distinto para se pensar a questão da segurança - algo que segue a linha de raciocínio de quem defende o paradigma da necessidade: "Em uma sociedade empoderada, as pessoas não precisam de leis escritas; elas têm o poder de determinar se alguém as impede de satisfazer suas necessidades e podem convocar seus pares para que as ajudem a resolver os conflitos. Desse ponto de vista, o problema não é o crime, mas os danos sociais - ações como assaltos e dirigir sob embriaguez, que podem de fato causar danos a outras pessoas. Esse paradigma acaba com a categoria de crime sem vítima e revela o absurdo que é proteger direitos de propriedade de pessoas privilegiadas em detrimento das necessidades que outras pessoas têm de sobreviver. Os ultrajes típicos da justiça capitalista, como prender quem passa fome por roubar de gente rica, não seriam possíveis em um paradigma baseado na necessidade" ("Anarquia funciona", de Peter Gelderloos).

o paradigma vigente em nossa sociedade capitalista é exposto no texto citado como o do crime e castigo: "Anarquistas enxergam certos problemas que as sociedades autoritárias colocam sob a lógica de crime e castigo de forma totalmente diferente. Um crime é a violação da lei escrita, e leis são impostas pelas elites. Em última instância, a questão não é se alguém está causando dano a uma outra pessoa, mas se está desobedecendo as ordens da elite. Como resposta ao crime, o castigo cria hierarquias de moralidade e poder entre as pessoas criminosas e as que administram a justiça. Nega-se às primeiras os recursos necessários para que possam ser reintegradas na comunidade e parem de causar danos a outras pessoas". uso esse texto como base pelo seu caráter altamente didático, mas poderíamos explorar outros materiais. o importante aqui é ao menos reconhecer que um paradigma baseado na necessidade para lidar com questões de segurança pública está muito mais próximo ao que pregamos em nosso programa do que a lógica punitivista que atravessa nossa sociedade, e talvez seja interessante radicalizar o programa abraçando de vez esse paradigma e tornando plena a nossa adesão a ele de duas formas (que não precisariam ser inseridas necessariamente em conjunto em nosso programa):

i - tomando como ideal o fim dos sistemas prisional e penal e assumindo que, em uma democracia plena, os prejuízos à sociedade receberiam tratamento totalmente diferente e digno do empoderamento radical que defendemos: seriam analisados, discutidos e resolvidos pela própria sociedade tendo em vista a supressão da necessidade que levou à conduta prejudicial e o acolhimento da pessoa que exerceu tal conduta de forma que ela não se sinta propensa a repetir a conduta (ver o capítulo sobre crime no texto de gelderloos aqui linkado para uma discussão sobre as questões de reintegração na sociedade, reincidência de crimes, taxas de criminalidade etc. em sociedades sem prisões)

ii - tomando ou não o abolicionismo caracterizado no ponto anterior como ideal, poderíamos nos negar qualquer estímulo à criminalização de condutas prejudiciais à sociedade e à ampliação do sistema penal vigente, assim como qualquer estímulo à punição como via para se solucionar os problemas de violência que temos em nossa sociedade.

um bom exemplo do segundo ponto seria a retirada (e substituição por outras propostas) de pontos como o seguinte, encontrado no tópico 25 sobre diversidade sexual e de gênero:

"III. O combate e a criminalização de todas formas de opressão direcionadas à sexualidade ou gênero, tanto em suas expressões físicas quanto verbais e morais;"

ou este do subtópico 26.2 sobre parto:

"VI. Criminalizar a violência obstétrica, tendo em vista sua invisibilidade, em todas as fases da gestação"

sobre o caso das opressões direcionadas às diversidades sexual e de gênero, recomendo o seguinte texto, bastante simples e direto: http://justificando.com/2015/03/26/contra-a-lgbtfobia-mas-a-luta-nao-deve-passar-pela-ampliacao-do-sistema-penal/

mais material nesta página do facebook e dicas de leitura neste blog

recomendação de paulo crosara: "A esquerda punitiva", por Maria Lúcia Karam

enfim, uma questão fundamental que temos de nos colocar no que diz respeito a pautas que defendem criminalização é a seguinte: se temos problemas sérios com nosso atual sistema prisional, se temos problemas com a seletividade extrema de uma justiça comprometida com os interesses das elites que têm acesso privilegiado ao aparato estatal, se temos problemas com a atuação de agentes da repressão (policiais, juízes, agentes penitenciários), entre outras coisas, por que diabos defendemos criminalização de certas condutas sob tais condições? não seria muito mais coerente que ao menos pedíssemos essa criminalização sob a condição de que só deveria ser realizada em uma sociedade profundamente diferente da que temos hoje (a saber, a sociedade que nós mesmos defendemos em nosso programa)? faz algum sentido convocar a ação do aparato estatal em uma de suas piores formas quando condenamos uma conduta, sabendo que essa ação será repleta de todo tipo de abusos e violências que também condenamos em geral? obviamente sentimos um incômodo profundo quando vemos que certas condutas em nada prejudiciais para nossa sociedade são criminalizadas enquanto outras que têm a forma de opressão direcionada a setores da sociedade já oprimidos de diversas maneiras não são, mas a solução é democratizar a violência do estado? não deveria uma organização política pensar alternativas sem perder de vista que existem condutas que oprimem minorias e que devem desaparecer para que tenhamos o mínimo de dignidade em uma sociedade?

"Deveríamos então supor que a prisão e de uma maneira geral, sem dúvida, os castigos, não se destinam a suprir as infrações, mas antes a distingui-las, a distruibuí-las, a utilizá-las; que visam, não tanto tornar dóceis os que estão prontos a transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeições. A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. Em resumo, a penalidade não “reprimiria” pura e simplesmenteas ilegalidades, faria sua “economia” geral. (…) Toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte deste mecanismo de dominação.” (Foucault)

KS

Kaiser Schwarcz Tue 31 Mar 2015 10:13AM

Discordo. As leis penais são importantes para estabelecer o que é ou não aceito pela sociedade. Acho que o código penal deve ser reformado (ou revolucionado) em um processo de democracia direta, com sua elaboração e aprovação feitas pelo conjunto da sociedade mas ainda deve existir.
A inexistência de um código penal criaria uma enorme insegurança social em que ninguém saberia o que é ou não crime e estaria sujeito a ser punido por qualquer ato que cometesse. Penso que seria uma situação ainda pior que a atual, um terror generalizada como na época do regime revolucionário francês.

B

Barney Tue 31 Mar 2015 1:40PM

ótima discussão!! Apesar de não me considerar abolicionista, tenho sérios problemas com as propostas de expansão do direito penal dentro do partido. Tudo é "criminalização da homofobia", "criminalização da violência pré-parto", algo até dificil de definir. Acho que recaímos no mesmo erro de quem tentamos combater: acreditar na mística do direito penal, de que ele seria solução para alguma coisa. Para mais, recomendo esse artigo: http://emporiododireito.com.br/a-esquerda-punitiva-por-maria-lucia-karam/

Não acredito no abolicionismo, quem tiver interesse posso escanear um tercho do livro do italiano Ferrajoli (pai da teoria do garantismo penal) onde ele indica que o destino final do abolicionismo, ou é um estado de natureza estilo Hobbes, ou sociedades totalizantes. A fim de prevenir crimes, a sociedade acabaria por impor códigos de condutas estritos para que ninguém saísse da linha.

De acordo com Ferrajoli, um estado democrático garante a liberdade de cometer crimes (polêmico) e também o direto a justa punição. É inerente em uma sociedade que se pretende plural, os conflitos e, com isso, crimes. Nesse cenários, a ausência completa de crimes seria um sintoma de algo está muito errado.

DU

KaNNoN Tue 31 Mar 2015 2:42PM

Querido @kaiserschwarcz :
Abolição no caso é do sistema prisional, do encarceramento -- e não necessariamente do fim do código penal.

KS

Kaiser Schwarcz Tue 31 Mar 2015 2:51PM

@kannon ,
Estava me referindo ao que o Galdino disse no tópico ("Em uma sociedade empoderada, as pessoas não precisam de leis escritas; elas têm o poder de determinar se alguém as impede de satisfazer suas necessidades e podem convocar seus pares para que as ajudem a resolver os conflitos")

KS

Kaiser Schwarcz Tue 31 Mar 2015 2:56PM

No mais, sou também contra a abolição do sistema prisional e do encarceramento. Acho que deve ser reduzido, que a maioria dos criminosos pode cumprir pena em liberdade.
Mas em casos como o de assassinos de aluguel, estupradores, torturadores, agressores reincidentes e casos afins, acredito que o encarceramento é necessário. Sou contra penas de morte e prisão perpétua, e até mesmo contra penas muito longas (10 anos de cadeia já acho muito). Mas penso que em certos casos é necessário o encarceramento, durante o qual o preso deveria ser reeducado, qualificado profissionalmente e ressocializado para voltar à liberdade no menor tempo possível.

KS

Kaiser Schwarcz Tue 31 Mar 2015 3:01PM

@paulomartinsdacost , a que livro do Ferrajoli você se refere?

DU

KaNNoN Tue 31 Mar 2015 3:06PM

Kaiser Schwarcz escreveu:
"@kannon ,
Estava me referindo ao que o Galdino disse no tópico (“Em uma sociedade empoderada, as pessoas não precisam de leis escritas; elas têm o poder de determinar se alguém as impede de satisfazer suas necessidades e podem convocar seus pares para que as ajudem a resolver os conflitos”)"

Não sei se há no que discordar sobre isso.

Você poderia argumentar... que uma 'sociedade empoderada' ou melhor, uma sociedade em que todos indivíduos compartilham de igual poder, é uma utopia -- mas poderíamos também apresentar comunidades ou coletivos em que isto (igual poder entre indivíduos) é uma realidade.

Este aqui me parece mais do que um exercício de idealização. Ao mesmo tempo que podemos puxar a discussão para um extremo idealista, podemos apresentar casos e fatos concretos em que a abolição da pena de encarceramento foi bem sucedida.

Ou quem sabe até mesmo teorizar etapas. Nossas leis de certa forma caminham nesta direção (descriminalização ou fim das penas de regime fechado daquilo considerado 'direitos de escolha individuais', regimes progressivos, condicionais, etc). Por outro lado quantidade de encarceramentos só aumenta, e os crimes não diminuem. [editado]

B

Barney Tue 31 Mar 2015 3:46PM

@kaiserschwarcz Direito e Razão. A teoria do garantismo penal.

G

galdino Tue 31 Mar 2015 4:54PM

como disse em outro tópico:

@kaiserschwarcz
“A inexistência de um código penal criaria uma enorma insegurança social em que ninguém saberia o que é ou não crime e estaria sujeito a ser punido por qualquer ató que cometesse”

isso não tem sentido nenhum quando a questão é mudança de paradigma crime-castigo para um paradigma da necessidade, infinitamente mais apropriado e coerente para sociedades nas quais uma democracia plena exercida por pessoas radicalmente empoderadas está em questão. regras para uma sociedade não têm nada a ver com código penal. em nenhuma sociedade sem leis determinadas sob a forma de código penal existe esse problema que você apontou. aliás, esse medo do terror é só parte de uma educação capitalista que recebemos.

G

galdino Tue 31 Mar 2015 5:07PM

em certo sentido, a abolição dos sistemas prisionais e do encarceramento passa pelo fim do código penal na medida em que tal abolição é acompanhada por uma mudança radical no modo pelo qual concebemos condutas prejudiciais à sociedade e as encaminhamos. mas pelo que pouco entendi da ideia de justiça restaurativa, dá para trabalhar a possibilidade de ter uma coisa sem a outra.

por outro lado, acho fundamental que tenhamos a noção de que códigos penais não são criações de sociedades empoderadas, e sim das elites com acesso ao aparato estatal. e perdem completamente o sentido na medida em que esse aparato deixa de existir ou é transformado radicalmente numa democracia minimamente justa e digna. qual a utilidade de um código penal para uma sociedade empoderada vivendo e exercendo plenamente a democracia? para que manter o uso de ferramentas de opressão e controle social numa sociedade já livre desses traços totalitários?

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